Afinal, quem é louco?
EXISTEM
DOIS TIPOS de loucos. O louco propriamente dito e o que cuida do louco: o
analista, o terapeuta, o psicólogo e o psiquiatra. Sim, somente um louco pode se
dispor a ouvir a loucura de seis ou oito outros loucos todos os dias, meses,
anos. Se não era louco, ficou.
Durante
mais de 40 anos passei longe deles. Mas o mundo gira, a lusitana roda e Portugal
me entortou um bocado a cabeça. Pronto, acabei diante de um louco, contando as
minhas loucuras acumuladas. Confesso, como louco confesso, que estou adorando
esta loucura semanal.
O
melhor na terapia é chegar antes, alguns minutos, e ficar observando os meus
colegas loucos na sala de espera. Onde faço a minha terapia é uma casa grande
com oito loucos analistas. Portanto, a sala de espera sempre tem três ou quatro,
ali, ansiosos, pensando na loucura que vão dizer daqui a pouco. Ninguém olha
para ninguém. O silêncio é uma loucura.
E eu,
como escritor, adoro observar as pessoas, imaginar os nomes, a profissão,
quantos filhos têm, se são rotarianos ou leoninos, corintianos ou palmeirenses.
Acho que todo escritor gosta deste brinquedo, no mínimo, criativo.
E a
sala de espera de um ''consultório médico", como diz a atendente absolutamente
normal (apenas uma pessoa normal lê tanto Herman Hesse como ela), é um prato
cheio para um louco escritor como eu. Senão, vejamos:
Na
última quarta-feira, estávamos eu, um crioulinho muito bem vestido, um senhor de
uns cinqüenta anos e uma velha gorda. Comecei, é claro, imediatamente a imaginar
qual era a loucura de cada um deles. Que motivos os teriam trazido até ali? Qual
seria o problema de cada um deles? Não foi difícil, porque eu já partia do
princípio que todos eram loucos, como eu. Senão não estariam ali, tão
cabisbaixos e ensimesmados. Em si mesmos.
O
pretinho, por exemplo. Claro que a cor, num país racista como o nosso, deve ter
contribuído muito para levá-lo até aquela poltrona de vime. Deve gostar de uma
branca, e os pais dela não aprovam o casamento, pensei. Ou será que não
conseguiu entrar como sócio do Harmonia? Notei que o tênis dele estava um pouco
velho. Problema de ascensão social, com certeza. O olhar dele era triste,
cansado. Comecei a ficar com pena dele. Depois notei que ele trazia uma mala.
Podia ser o corpo da namorada esquartejado lá dentro. Talvez apenas a cabeça.
Devia ser um assassino, ou suicida, no mínimo. Podia ter também uma arma lá
dentro. Podia ser perigoso. Afastei-me um pouco dele no sofá. Ele dava olhadas
furtivas para dentro da sua mala assassina.
E o
senhor de terno preto, gravata, meia e sapatos também pretos? Como ele estava
sofrendo, coitado. Ele disfarçava, mas notei que tinha um pequeno tique no olho
esquerdo. Corno, na certa. E manso. Corno manso sempre tem tiques. Já notaram?
Observo as mãos. Roia as unhas. Insegurança total, medo de viver. Filho drogado?
Bem provável. Como era infeliz este meu personagem. Uma hora tirou o lenço, e eu
já estava esperando as lágrimas quando ele assoou o nariz violentamente,
interrompendo o Herman Hesse da outra. Faltava um botão na camisa. Claro,
abandonado pela esposa. Devia morar num flat, pagar caro, devia ter dívidas
astronômicas. Homossexual? Acho que não. Ninguém beijaria um homem com um bigode
daqueles. Tingido.
Mas a
melhor, a mais doida, era a louca gorda e baixinha. Que bunda imensa! Como
sofria, meu Deus. Bastava olhar no rosto dela. Não devia fazer amor há mais de
trinta anos. Será que se masturbaria? Será que era este o problema dela? Uma
velha masturbadora? Não! Tirou um terço da bolsa e começou a rezar. Meu Deus, o
caso é mais grave do que eu pensava. Estava no quinto cigarro em dez minutos.
Tensa. Coitada. O que deve ser dos filhos dela? Acho que os filhos não comem a
macarronada dela há dezenas e dezenas de domingos. Tinha cara também de quem
tinha uma prisão de ventre crônica. Tinha cara, também, de quem mentia para o
analista. Minha mãe rezaria uma Salve-Rainha por ela, se a
conhecesse.
Acabou
o meu tempo. Tenho que ir conversar com o meu terapeuta. Conto para ele a minha
viagem na sala de espera. Ele ri, ri muito, o meu terapeuta:
—O
Ditinho é o nosso office-boy. O de terno preto é representante de um laboratório
multinacional de remédios lá do Ipiranga, e passa por aqui uma vez por mês com
as novidades. E a gordinha é a dona Dirce, a minha mãe. E você não vai ter alta
tão cedo.
MÁRIO PRATA